sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Vencendo a falta de reconhecimento




Às vezes, pensamos que perseveramos com alguém ou alguma coisa por um sonho e que vamos ter nossos esforços reconhecidos pelas pessoas com quem nós lidamos. Esse relato de Clarice Lispector mostra algo de encontrar-se com a lei do reconhecimento que é importante sabermos.

Ela conta que amava muito ler, desde criança, mas não tinha condições de comprar um livro. Enquanto isso, havia uma menina filha de livreiro, que tinha todos os livros à sua disposição, mas não os lia. Um dia, a filha do livreiro lhe disse que possuía um volume de Reinações de Narizinho, Monteiro Lobato, um sonho para crianças (eu li a coleção toda até os oito anos de idade). E a menina prometeu emprestar a Clarice o volume. Clarice narra assim:

Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E completamente acima de minhas posses. Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela o emprestaria. Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança da alegria: eu não vivia, eu nadava devagar num mar suave. No dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo. Ela não morava num sobrado como eu, e sim numa casa. Não me mandou entrar. Olhando bem para meus olhos, disse-me que havia emprestado o livro a outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Boquiaberta, saí devagar, mas em breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a andar pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas ruas de Recife. Dessa vez nem caí: guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias seguintes eram a minha vida inteira, o amor pelo mundo me esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não caí nenhuma vez (LISPECTOR, 2009, p. 19).

Depois, repetidamente, dia após dia, Clarisse ia até à casa da menina para pegar o livro e ela dizia tê-lo emprestado a outra pessoa. Mas, um dia,

Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa, apareceu sua mãe. Esta devia estar estranhando a aparição muda e diária daquela menina à porta de sua casa. Pediu explicações a nós duas. Houve uma confusão silenciosa, entrecortada de palavras pouco elucidativas. A senhora achava cada vez mais estranho o fato de não entender. Até que essa mãe boa entendeu. Voltou-se para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas este livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis ler! E o pior para ela não era essa descoberta. Devia ser a descoberta da filha que tinha. Com certo horror nos espiava: a potência de perversidade de sua filha desconhecida, e a menina em pé à porta, exausta, ao vento das ruas de Recife. Foi então que, se refazendo, disse firme e calma para a filha: você vai emprestar agora mesmo As reinações de Narizinho. E para mim disse tudo o que eu jamais poderia aspirar ouvir. “E você fica com o livro por quanto tempo quiser.” Entendem? Valia mais do que me dar o livro: pelo tempo que eu quisesse é tudo o que uma pessoa, pequena ou grande, pode querer.
Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim recebi o livro na mão. Acho que eu não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até chegar em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração estarrecido, pensativo. Chegando em casa, não comecei a ler. [...] Como demorei! Eu vivia no ar... Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada. (LISPECTOR, 2009, p. 19/20).

O que levou Clarisse ao reconhecimento e ao apoio para conseguir seu tão sonhado alvo impossível foi a sua perseverança em tentar obtê-lo em insistência serena. A indisposição da dona do livro e sua crueldade não impediram que a perseverança de Clarisse despertasse a atenção da Mãe dela. O reconhecimento veio por outro caminho, mas veio. Não há plantio relacional sem colheita. Ela apenas continuou sendo quem era e buscando o que queria e conseguiu realizar seu desejo. Aquilo que existe será notado, o que se planta, será colhido, não importa o tempo que passe. Lembre-se: a  própria família de Jesus procurava prendê-lo e pensavam que estava louco:

E, quando os parentes de Jesus ouviram isto, saíram para o prender; porque diziam: Está fora de si. [...] Nisto, chegaram sua mãe e seus irmãos e, tendo ficado do lado de fora, mandaram chamá-lo. Muita gente estava assentada ao redor dele e lhe disseram: Olha, tua mãe, teus irmãos e irmãs estão lá fora à tua procura. Então, ele lhes respondeu, dizendo: Quem é minha mãe e meus irmãos? E, correndo o olhar pelos que estavam assentados ao redor, disse: Eis minha mãe e meus irmãos. Portanto, qualquer que fizer a vontade de Deus, esse é meu irmão, irmã e mãe. (Marcos 3:21, 31-35) Veja também (João 7:3-5).

A demora no reconhecimento não muda os planos de Deus. Depois que Jesus ressuscitou, sua mãe estava com os irmãos de Jesus e os apóstolos em Pentecostes: Todos estes perseveravam unânimes em oração, com as mulheres, com Maria, mãe de Jesus, e com os irmãos dele.” (Atos 1:14). A perseverança ativa o reconhecimento e o favor.

Quando o reconhecimento demora



Mardoqueu (Mordecai) salvou a vida do rei, denunciando uma tentativa de assassinato e não foi reconhecido imediatamente:

Naqueles dias, estando Mordecai sentado à porta do rei, dois eunucos do rei, dos guardas da porta, Bigtã e Teres, sobremodo se indignaram e tramaram atentar contra o rei Assuero. Veio isso ao conhecimento de Mordecai, que o revelou à rainha Ester, e Ester o disse ao rei, em nome de Mordecai. Investigou-se o caso, e era fato; e ambos foram pendurados numa forca. Isso foi escrito no Livro das Crônicas, perante o rei. (Ester 2:21-23).

Mas observe uma coisa especialmente importante: Isso foi escrito no Livro das Crônicas, perante o rei. Aquilo que plantamos, que fazemos, que insistimos, fica registrado perante o rei do céu também. Ele não esquecerá. Davi sabia disso e sabia que podia contar com Deus: Contaste os meus passos quando sofri perseguições; recolheste as minhas lágrimas no teu odre; não estão elas inscritas no teu livro? No dia em que eu te invocar, baterão em retirada os meus inimigos; bem sei isto: que Deus é por mim.” (Salmos 56:8-9). E já dizia o salmista: “Quem sai andando e chorando, enquanto semeia, voltará com júbilo, trazendo os seus feixes.” (Salmos 126:6).

O momento guardado por Deus

Talvez Mordecai estivesse pensando que o rei era ingrato, por ele não ter recebido nem um aperto de mão por sua boa ação de ter salvo a vida do rei. Mas Deus estava guardando o recurso para o momento certo. Mais tarde, por Mordecai não se dobrar diante de Hamã (o que era proibido a um judeu fiel a Deus), Hamã destinou-se a destrui-lo e armou uma trama para destruir a ele, a seus compatriotas e roubar-lhe os bens

Depois destas coisas, o rei Assuero engrandeceu a Hamã, filho de Hamedata, agagita, e o exaltou, e lhe pôs o trono acima de todos os príncipes que estavam com ele. Todos os servos do rei, que estavam à porta do rei, se inclinavam e se prostravam perante Hamã; porque assim tinha ordenado o rei a respeito dele. Mordecai, porém, não se inclinava, nem se prostrava. [...] Vendo, pois, Hamã que Mordecai não se inclinava, nem se prostrava diante dele, encheu-se de furor. Porém teve como pouco, nos seus propósitos, o atentar apenas contra Mordecai, porque lhe haviam declarado de que povo era Mordecai; por isso, procurou Hamã destruir todos os judeus, povo de Mordecai, que havia em todo o reino de Assuero. (Ester 3:1-6)

Hamã conseguiu um decreto e financiamento real para exterminar os judeus. Mordecai e Ester se levantaram em oração. E Deus começou a agir e utilizou-se do recurso do reconhecimento na hora certa. Além da hora certa, veja como Mordecai foi reconhecido e quem teve que providenciar tudo:

Naquela noite, o rei não pôde dormir; então, mandou trazer o Livro dos Feitos Memoráveis, e nele se leu diante do rei. Achou-se escrito que Mordecai é quem havia denunciado a Bigtã e a Teres, os dois eunucos do rei, guardas da porta, que tinham procurado matar o rei Assuero. Então, disse o rei:
- Que honras e distinções se deram a Mordecai por isso?
- Nada lhe foi conferido, responderam os servos do rei que o serviam. ¶
Perguntou o rei:
- Quem está no pátio?
Ora, Hamã tinha entrado no pátio exterior da casa do rei, para dizer ao rei que se enforcasse a Mordecai na forca que ele, Hamã, lhe tinha preparado. Os servos do rei lhe disseram:
- Hamã está no pátio.
Disse o rei que entrasse. Entrou Hamã. O rei lhe disse:
- Que se fará ao homem a quem o rei deseja honrar?
Então, Hamã disse consigo mesmo: “De quem se agradaria o rei mais do que de mim para honrá-lo?” E respondeu ao rei:
- Quanto ao homem a quem agrada ao rei honrá-lo, tragam-se as vestes reais, que o rei costuma usar, e o cavalo em que o rei costuma andar montado, e tenha na cabeça a coroa real; entreguem-se as vestes e o cavalo às mãos dos mais nobres príncipes do rei, e vistam delas aquele a quem o rei deseja honrar; levem-no a cavalo pela praça da cidade e diante dele apregoem: “Assim se faz ao homem a quem o rei deseja honrar.”
Então, disse o rei a Hamã:
- Apressa-te, toma as vestes e o cavalo, como disseste, e faze assim para com o judeu Mordecai, que está assentado à porta do rei; e não omitas coisa nenhuma de tudo quanto disseste.
Hamã tomou as vestes e o cavalo, vestiu a Mordecai, e o levou a cavalo pela praça da cidade, e apregoou diante dele:
- Assim se faz ao homem a quem o rei deseja honrar. ¶
Depois disto, Mordecai voltou para a porta do rei; porém Hamã se retirou correndo para casa, angustiado e de cabeça coberta. (Ester 6:1-12)

A soberba precede a ruína (Provérbios 16:18). Tudo aquilo que Hamã quis receber foi dado a Mordecai. Por mais tempo que uma pessoa pareça digna, o seu verdadeiro caráter mau se tornará um laço para ela. E, afinal, Deus honrará na hora certa os seus filhos obedientes.

A grande e antiga armadilha

Quando procuramos e nos achamos dignos de elogios e reconhecimento estamos nos elevando a nós mesmos. Quem deve nos elevar é o Senhor. Ele é recompensador daquele que o buscam (Hebreus 11:3). Quando queremos ser vistos e recompensados pelos homens estamos no risco de um grande laço. Foi assim que o diabo caiu e é uma das formas mais comuns de ele derrubar

Filho do homem, levanta uma lamentação contra o rei de Tiro e dize-lhe: Assim diz o SENHOR Deus: Tu és o sinete da perfeição, cheio de sabedoria e formosura. Estavas no Éden, jardim de Deus; de todas as pedras preciosas te cobrias: o sárdio, o topázio, o diamante, o berilo, o ônix, o jaspe, a safira, o carbúnculo e a esmeralda; de ouro se te fizeram os engastes e os ornamentos; no dia em que foste criado, foram eles preparados. Tu eras querubim da guarda ungido, e te estabeleci; permanecias no monte santo de Deus, no brilho das pedras andavas. Perfeito eras nos teus caminhos, desde o dia em que foste criado até que se achou iniqüidade em ti. Na multiplicação do teu comércio, se encheu o teu interior de violência, e pecaste; pelo que te lançarei, profanado, fora do monte de Deus e te farei perecer, ó querubim da guarda, em meio ao brilho das pedras. Elevou-se o teu coração por causa da tua formosura, corrompeste a tua sabedoria por causa do teu resplendor; lancei-te por terra, diante dos reis te pus, para que te contemplem. Pela multidão das tuas iniqüidades, pela injustiça do teu comércio, profanaste os teus santuários; eu, pois, fiz sair do meio de ti um fogo, que te consumiu, e te reduzi a cinzas sobre a terra, aos olhos de todos os que te contemplam. Todos os que te conhecem entre os povos estão espantados de ti; vens a ser objeto de espanto e jamais subsistirás. (Ezequiel 28:12-19)

 Todo o problema do diabo foi desejar o estrelato, os louvores e até a adoração. Precisamos saber receber o que o Senhor nos dá como Mordecai. Após o desfile de triunfo (que não recusou), foi novamente sentar-se à porta do Rei, como servo. Um servo de Deus tem que saber que o elogio e a valorização vem do Senhor e ninguém poderá mudar isso. Só que tem o tempo certo e precisa ser regado com oração e, no caso de Mordecai, jejum.



 Deus não se atrasa, Ele faz na hora certa, ele provoca a oportunidade se for necessário. Observe que a honra que veio para Mordecai começou com a insônia do rei, assim também inquietou o rei do Egito para ter a oportunidade de decifrar o sonho do faraó. Mas observe, José conheceu e ajudou o copeiro do rei, pessoa de sua inteira confiança, e só depois de dois anos ele foi levado à presença do rei. Se José tivesse desistido de ser quem era porque alguém não lhe disse obrigado, não haveria nenhum profeta para ser apresentado ao rei e nem ser posto sobre o Egito. Trabalhe pelo tempo de reconhecimento de Deus e a recompensa virá, talvez de onde você menos espera. 

Se e quando for necessário e você tiver estrutura para suportar, você receberá relevância. O Senhor é justo e bom. Mas isso não pode ser seu foco, e sim fazer o melhor para Deus a despeito de qualquer coisa.

Você pode orar assim:

Querido Deus, afasta de meu coração a cobrança e a necessidade de ser reconhecido pelas pessoas em tudo o que faço. Perdoa-me por dedicar-me ao seu elogio e esquecer que o Senhor sempre vê e reconhece e tem escrito no teu livro tudo o que faço. Dá-me humildade para buscar receber elogios e reconhecimentos somente de ti e quando for necessário, sem me exaltar com isso, somente continuar te servindo, pois teu é o reino e a glória para sempre.


Referências:

LISPECTOR, Clarisse. Tortura e glória. In: IRELAND, Timothy; STRAUZ, Rosa Amanda; REZENDE, Valéria (Org.). O pequeno livro das grandes emoções. Brasília, UNESCO, 2009. 


Um comentário:

  1. Gosto muito de Clarice Lispector e não tinha conhecimento desta passagem tão significativa. Para quem gosta de ler receber um livro é sempre valioso. Principalmente da forma como foi conquistada por ela. Achei perfeito o texto. Importante para quem obstina-se nos seus propósitos com fé e determinação.

    Grata;

    Soraya

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