Às vezes, pensamos que perseveramos com alguém ou alguma
coisa por um sonho e que vamos ter nossos esforços reconhecidos pelas pessoas
com quem nós lidamos. Esse relato de Clarice Lispector mostra algo de
encontrar-se com a lei do reconhecimento que é importante sabermos.
Ela conta que amava muito ler, desde criança, mas não
tinha condições de comprar um livro. Enquanto isso, havia uma menina filha de
livreiro, que tinha todos os livros à sua disposição, mas não os lia. Um dia, a
filha do livreiro lhe disse que possuía um volume de Reinações de Narizinho,
Monteiro Lobato, um sonho para crianças (eu li a coleção toda até os oito anos
de idade). E a menina prometeu emprestar a Clarice o volume. Clarice narra
assim:
Era um livro grosso, meu Deus, era um
livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E completamente
acima de minhas posses. Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte
e que ela o emprestaria. Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança
da alegria: eu não vivia, eu nadava devagar num mar suave. No dia seguinte fui
à sua casa, literalmente correndo. Ela não morava num sobrado como eu, e sim
numa casa. Não me mandou entrar. Olhando bem para meus olhos, disse-me que
havia emprestado o livro a outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para
buscá-lo. Boquiaberta, saí devagar, mas em breve a esperança de novo me tomava
toda e eu recomeçava na rua a andar pulando, que era o meu modo estranho de
andar pelas ruas de Recife. Dessa vez nem caí: guiava-me a promessa do livro, o
dia seguinte viria, os dias seguintes eram a minha vida inteira, o amor pelo
mundo me esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não caí nenhuma vez
(LISPECTOR, 2009, p. 19).
Depois, repetidamente, dia após dia, Clarisse ia até à
casa da menina para pegar o livro e ela dizia tê-lo emprestado a outra pessoa.
Mas, um dia,
Até que um dia, quando eu estava à
porta de sua casa, ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa, apareceu sua mãe.
Esta devia estar estranhando a aparição muda e diária daquela menina à porta de
sua casa. Pediu explicações a nós duas. Houve uma confusão silenciosa, entrecortada
de palavras pouco elucidativas. A senhora achava cada vez mais estranho o fato
de não entender. Até que essa mãe boa entendeu. Voltou-se para a filha e com
enorme surpresa exclamou: mas este livro nunca saiu daqui de casa e você nem
quis ler! E o pior para ela não era essa descoberta. Devia ser a descoberta da
filha que tinha. Com certo horror nos espiava: a potência de perversidade de
sua filha desconhecida, e a menina em pé à porta, exausta, ao vento das ruas de
Recife. Foi então que, se refazendo, disse firme e calma para a filha: você vai
emprestar agora mesmo As reinações de Narizinho. E para mim
disse tudo o que eu jamais poderia aspirar ouvir. “E você fica com o livro por
quanto tempo quiser.” Entendem? Valia mais do que me dar o livro: pelo tempo
que eu quisesse é tudo o que uma pessoa, pequena ou grande, pode querer.
Como contar o que se seguiu? Eu estava
estonteada, e assim recebi o livro na mão. Acho que eu não disse nada. Peguei o
livro. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que
segurava o livro com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo
levei até chegar em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu
coração estarrecido, pensativo. Chegando em casa, não comecei a ler. [...] Como
demorei! Eu vivia no ar... Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha
delicada. (LISPECTOR, 2009, p. 19/20).
O que levou Clarisse ao reconhecimento e ao apoio para
conseguir seu tão sonhado alvo impossível foi a sua perseverança em tentar
obtê-lo em insistência serena. A indisposição da dona do livro e sua crueldade
não impediram que a perseverança de Clarisse despertasse a atenção da Mãe dela.
O reconhecimento veio por outro caminho, mas veio. Não há plantio relacional
sem colheita. Ela apenas continuou sendo quem era e buscando o que queria e
conseguiu realizar seu desejo. Aquilo que existe será notado, o que se planta,
será colhido, não importa o tempo que passe. Lembre-se: a própria família de Jesus procurava prendê-lo e pensavam que
estava louco:
E, quando os parentes de Jesus
ouviram isto, saíram para o prender; porque diziam: Está fora de si. [...] Nisto,
chegaram sua mãe e seus irmãos e, tendo ficado do lado de fora, mandaram
chamá-lo. Muita gente estava assentada ao redor dele e lhe disseram: Olha, tua
mãe, teus irmãos e irmãs estão lá fora à tua procura. Então, ele lhes
respondeu, dizendo: Quem é minha mãe e meus irmãos? E, correndo o olhar pelos
que estavam assentados ao redor, disse: Eis minha mãe e meus irmãos. Portanto,
qualquer que fizer a vontade de Deus, esse é meu irmão, irmã e mãe. (Marcos 3:21,
31-35) Veja também (João 7:3-5).
A demora no reconhecimento não muda os planos de Deus. Depois
que Jesus ressuscitou, sua mãe estava com os irmãos de Jesus e os apóstolos em
Pentecostes: “Todos estes perseveravam unânimes em oração, com as
mulheres, com Maria, mãe de Jesus, e com os irmãos dele.” (Atos 1:14). A perseverança ativa o reconhecimento e o
favor.
Quando o reconhecimento demora
Mardoqueu (Mordecai) salvou a vida do rei, denunciando uma tentativa de
assassinato e não foi reconhecido imediatamente:
Naqueles dias, estando Mordecai sentado à porta do rei, dois eunucos do
rei, dos guardas da porta, Bigtã e Teres, sobremodo se indignaram e tramaram
atentar contra o rei Assuero. Veio isso ao conhecimento de Mordecai, que o
revelou à rainha Ester, e Ester o disse ao rei, em nome de Mordecai.
Investigou-se o caso, e era fato; e ambos foram pendurados numa forca. Isso foi
escrito no Livro das Crônicas, perante o rei. (Ester 2:21-23).
Mas observe uma coisa especialmente importante: “Isso foi escrito no Livro das Crônicas, perante o rei.” Aquilo
que plantamos, que fazemos, que insistimos, fica registrado perante o rei do
céu também. Ele não esquecerá. Davi sabia disso e sabia que podia contar com
Deus: “Contaste os meus passos quando sofri perseguições;
recolheste as minhas lágrimas no teu odre; não estão elas inscritas no teu
livro? No dia em que eu te invocar, baterão em retirada os meus inimigos; bem
sei isto: que Deus é por mim.” (Salmos 56:8-9). E já dizia o salmista: “Quem sai andando e chorando, enquanto semeia, voltará com
júbilo, trazendo os seus feixes.” (Salmos 126:6).
O momento guardado por Deus
Talvez Mordecai estivesse pensando que o rei era ingrato,
por ele não ter recebido nem um aperto de mão por sua boa ação de ter salvo a
vida do rei. Mas Deus estava guardando o recurso para o momento certo. Mais
tarde, por Mordecai não se dobrar diante de Hamã (o que era proibido a um judeu
fiel a Deus), Hamã destinou-se a destrui-lo e armou uma trama para destruir a
ele, a seus compatriotas e roubar-lhe os bens
Depois destas coisas, o rei Assuero engrandeceu a Hamã, filho de Hamedata,
agagita, e o exaltou, e lhe pôs o trono acima de todos os príncipes que estavam
com ele. Todos os servos do rei, que estavam à porta do rei, se inclinavam e se
prostravam perante Hamã; porque assim tinha ordenado o rei a respeito dele.
Mordecai, porém, não se inclinava, nem se prostrava. [...] Vendo, pois, Hamã
que Mordecai não se inclinava, nem se prostrava diante dele, encheu-se de
furor. Porém teve como pouco, nos seus propósitos, o atentar apenas contra
Mordecai, porque lhe haviam declarado de que povo era Mordecai; por isso,
procurou Hamã destruir todos os judeus, povo de Mordecai, que havia em todo o
reino de Assuero. (Ester 3:1-6)
Hamã conseguiu um decreto e financiamento real para
exterminar os judeus. Mordecai e Ester se levantaram em oração. E Deus começou
a agir e utilizou-se do recurso do reconhecimento na hora certa. Além da hora
certa, veja como Mordecai foi reconhecido e quem teve que providenciar tudo:
Naquela noite, o rei não pôde dormir; então, mandou trazer o Livro dos
Feitos Memoráveis, e nele se leu diante do rei. Achou-se escrito que Mordecai é
quem havia denunciado a Bigtã e a Teres, os dois eunucos do rei, guardas da
porta, que tinham procurado matar o rei Assuero. Então, disse o rei:
- Que honras e distinções se deram a Mordecai por isso?
- Nada lhe foi conferido, responderam os servos do rei que o serviam. ¶
Perguntou o rei:
- Quem está no pátio?
Ora, Hamã tinha entrado no pátio exterior da casa do rei, para dizer ao
rei que se enforcasse a Mordecai na forca que ele, Hamã, lhe tinha preparado.
Os servos do rei lhe disseram:
- Hamã está no pátio.
Disse o rei que entrasse. Entrou Hamã. O rei lhe disse:
- Que se fará ao homem a quem o rei deseja honrar?
Então, Hamã disse consigo mesmo: “De quem se agradaria o rei mais do que
de mim para honrá-lo?” E respondeu ao rei:
- Quanto ao homem a quem agrada ao rei honrá-lo, tragam-se as vestes
reais, que o rei costuma usar, e o cavalo em que o rei costuma andar montado, e
tenha na cabeça a coroa real; entreguem-se as vestes e o cavalo às mãos dos
mais nobres príncipes do rei, e vistam delas aquele a quem o rei deseja honrar;
levem-no a cavalo pela praça da cidade e diante dele apregoem: “Assim se faz ao
homem a quem o rei deseja honrar.”
Então, disse o rei a Hamã:
- Apressa-te, toma as vestes e o cavalo, como disseste, e faze assim para
com o judeu Mordecai, que está assentado à porta do rei; e não omitas coisa
nenhuma de tudo quanto disseste.
Hamã tomou as vestes e o cavalo, vestiu a Mordecai, e o levou a cavalo
pela praça da cidade, e apregoou diante dele:
- Assim se faz ao homem a quem o rei deseja honrar. ¶
Depois disto, Mordecai voltou para a porta do rei; porém Hamã se retirou
correndo para casa, angustiado e de cabeça coberta. (Ester 6:1-12)
A soberba precede a ruína (Provérbios 16:18). Tudo aquilo
que Hamã quis receber foi dado a Mordecai. Por mais tempo que uma pessoa pareça
digna, o seu verdadeiro caráter mau se tornará um laço para ela. E, afinal,
Deus honrará na hora certa os seus filhos obedientes.
A grande e antiga armadilha
Quando procuramos e nos achamos dignos de elogios e reconhecimento
estamos nos elevando a nós mesmos. Quem deve nos elevar é o Senhor. Ele é
recompensador daquele que o buscam (Hebreus 11:3). Quando queremos ser vistos e
recompensados pelos homens estamos no risco de um grande laço. Foi assim que o
diabo caiu e é uma das formas mais comuns de ele derrubar
Filho do homem, levanta uma lamentação contra o rei de Tiro e dize-lhe:
Assim diz o SENHOR Deus: Tu és o sinete da perfeição, cheio de sabedoria e
formosura. Estavas no Éden, jardim de Deus; de todas as pedras preciosas te
cobrias: o sárdio, o topázio, o diamante, o berilo, o ônix, o jaspe, a safira,
o carbúnculo e a esmeralda; de ouro se te fizeram os engastes e os ornamentos;
no dia em que foste criado, foram eles preparados. Tu eras querubim da guarda
ungido, e te estabeleci; permanecias no monte santo de Deus, no brilho das
pedras andavas. Perfeito eras nos teus caminhos, desde o dia em que foste
criado até que se achou iniqüidade em ti. Na multiplicação do teu comércio, se
encheu o teu interior de violência, e pecaste; pelo que te lançarei, profanado,
fora do monte de Deus e te farei perecer, ó querubim da guarda, em meio ao
brilho das pedras. Elevou-se o teu coração por causa da tua formosura,
corrompeste a tua sabedoria por causa do teu resplendor; lancei-te por terra,
diante dos reis te pus, para que te contemplem. Pela multidão das tuas
iniqüidades, pela injustiça do teu comércio, profanaste os teus santuários; eu,
pois, fiz sair do meio de ti um fogo, que te consumiu, e te reduzi a cinzas
sobre a terra, aos olhos de todos os que te contemplam. Todos os que te
conhecem entre os povos estão espantados de ti; vens a ser objeto de espanto e
jamais subsistirás. (Ezequiel 28:12-19)
Todo o problema do
diabo foi desejar o estrelato, os louvores e até a adoração. Precisamos saber
receber o que o Senhor nos dá como Mordecai. Após o desfile de triunfo (que não
recusou), foi novamente sentar-se à porta do Rei, como servo. Um servo de Deus
tem que saber que o elogio e a valorização vem do Senhor e ninguém poderá mudar
isso. Só que tem o tempo certo e precisa ser regado com oração e, no caso de
Mordecai, jejum.
Deus não se
atrasa, Ele faz na hora certa, ele provoca a oportunidade se for necessário.
Observe que a honra que veio para Mordecai começou com a insônia do rei, assim
também inquietou o rei do Egito para ter a oportunidade de decifrar o sonho do
faraó. Mas observe, José conheceu e ajudou o copeiro do rei, pessoa de sua
inteira confiança, e só depois de dois anos ele foi levado à presença do rei.
Se José tivesse desistido de ser quem era porque alguém não lhe disse obrigado,
não haveria nenhum profeta para ser apresentado ao rei e nem ser posto sobre o Egito.
Trabalhe pelo tempo de reconhecimento de Deus e a recompensa virá, talvez de onde você menos
espera.
Se e quando for necessário e você tiver estrutura para suportar, você receberá relevância. O Senhor é justo e bom. Mas isso não pode ser seu foco, e sim fazer o melhor para Deus a despeito de qualquer coisa.
Você pode orar assim:
Querido
Deus, afasta de meu coração a cobrança e a necessidade de ser reconhecido pelas
pessoas em tudo o que faço. Perdoa-me por dedicar-me ao seu elogio e esquecer
que o Senhor sempre vê e reconhece e tem escrito no teu livro tudo o que faço.
Dá-me humildade para buscar receber elogios e reconhecimentos somente de ti e
quando for necessário, sem me exaltar com isso, somente continuar te servindo,
pois teu é o reino e a glória para sempre.
Referências:
LISPECTOR, Clarisse.
Tortura e glória. In: IRELAND, Timothy; STRAUZ, Rosa Amanda; REZENDE, Valéria
(Org.). O pequeno livro das grandes emoções.
Brasília, UNESCO, 2009.
Gosto muito de Clarice Lispector e não tinha conhecimento desta passagem tão significativa. Para quem gosta de ler receber um livro é sempre valioso. Principalmente da forma como foi conquistada por ela. Achei perfeito o texto. Importante para quem obstina-se nos seus propósitos com fé e determinação.
ResponderExcluirGrata;
Soraya